domingo, setembro 23, 2007

Prosa em tempo de guerra - Moçambique


MOMENTOS DE REFLEXÃO
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Três homens sentados nos bidões que guardam o combustível que fará movimentar os Unimogs prontos a transportar o pessoal para as praias da baia de Fernão Veloso, durante o mês de descanso. E todos merecem este repouso para recuperar dos dias trágicos do Vale de Miteda, onde alguns verteram o seu sangue até à morte.
Em tempo de reflexão, as ideias são mais profícuas e conduzem a observações mais consistentes sobre os efeitos da guerra nas vidas dos jovens desta geração. Estamos em véspera de mais um dia da Restauração da independência e, naturalmente, vem à baila esta anacrónica fase da história, que marca as contradições da nossa condição de colonialistas combatendo a vontade de independência destas gentes que nos são distantes!
O Simões e o Tavares são, talvez, os mais renitentes em continuar na guerra, já que se têm manifestado contra alguns sistemas de poder da hierarquia. Há cerca de dois meses que requereram a saída das fileiras. Ambos têm garantido o desempenho de funções bem mais profícuas para o país. O Simões tem emprego na metrópole e quer terminar a licenciatura; o Tavares está contratado por uma empresa de petróleos, com a garantia de um ordenado muito superior ao do tenente-coronel seu comandante de batalhão.. Fazendo parte do grupo, está o Santos, com a garantia de emprego na fábrica de cerveja Manica, na cidade da Beira. São três jovens sargentos pára-quedistas, com o futuro hipotecado nesta guerra e que já deram muito do seu saber às tropas pára-quedistas a que pertencem. Todos têm as suas próprias convicções, que defendem com um elevado conhecimento cultural e informal. Com problemas comuns, sabem farejar opiniões para um entendimento dinâmico da situação do país, como atesta o Tavares:
- Por tudo aquilo que se vê nos apoios à tropa destacada desde Macomia a Mueda, passando por Miteda, Nangololo, Negomano e Nangade, é um salve-se quem puder. O mesmo se pode dizer com os meios para evacuação dos mortos e feridos, nas picadas. Os “grandes chefes” estão-se cagando para a malta que morre sem assistência e por carência de helicópteros, e também para os que sofrem os rigores do isolamento e se amolam nas penosas caminhadas de mochila às costas, pelo meio da mata.
Esticando as pernas, o Simões atalhou:
- Quem se governa são os “monhés” que exploram o comércio com os brancos e com os pretos; e, mesmo que estes gajos venham a chegar à independência, vai ser um processo muito lento para dominarem os meios de produção e colherem os frutos da sua terra.
O Santos, mais integrado na sociedade moçambicana, reconhece que muitos brancos, seus conterrâneos (minhotos), estão a ser escravizados pelos holandeses que mandam nos colonatos e refere:
- Eu fiquei indignado quando visitei uns amigos que trabalham nos colonatos próximo de João Belo. Vivem pior dos que os pretos, sem auto estima, e poucos chegam a encarregados, porque os estrangeiros os oprimem. Então, nos ordenados, ganham menos de um quinto do que ganham os estrangeiros que vivem em palacetes com ar condicionado e cheios de mordomias, enquanto os portugueses vivem no tabique. É uma autêntica afronta à soberania portuguesa.
Do lado da baía corre uma brisa suave, enquanto o sol se estende para alem das matas lá para os lados de Nampula. Aproxima-se mais uma noite de combate aos mosquitos. Mas a conversa prossegue com o Tavares a proferir a sua breve palestra:
- Pensando bem, não chego a perceber quem é que manda em Moçambique. Pelo que se viu durante o curso de pára-quedismo civil ministrado ao engenheiro Jorge Jardim, respectiva família e amigos, o governador parece ser um “verbo de encher”; quando foi preciso um avião para os saltos, o engenheiro telefonou ao governador e logo este mandou o “seu” Dakota de Lourenço Marques para a Beira. E só foi de volta depois de todos os instruendos terem efectuado todos os saltos. O mesmo se tem passado com as obras no Batalhão da Beira – quem manda é o engenheiro Jorge Jardim!
O Simões também tem as suas dúvidas:
- Aqui em Nacala, parece que todos obedecem aos poderes de Nampula. Os poderes estão lá instalados, gozam dos oásis em tempo de guerra. As “madames” dos comandantes e da gente fina passam o tempo nas esplanadas em alegres cavaqueiras ou nas piscinas pagas pela tropa, onde mostram as finas peles dos corpos elegantes; logo ao lado, no hospital militar cheio de carências para fazer face à gravidade das situações, os militares, com os corpos estropiados e feridas marcantes para o resto da vida, sofrem por terem trilhado os caminhos e as matas do norte em nome da escumalha da sociedade.
O Tavares abanou a cabeça num gesto concordante e diz:
- Esta é mais uma situação de descarado afrontamento. Há tempos atrás tive um desentendimento com o chefe da Pide de Nampula, só porque o dito cujo entendeu que o bar do Hotel Portugal não deve servir militares que não pertençam aos aquartelamentos de Nampula. E por causa duma fulana que me acompanhava, o filho da puta desafiou-me para a pancada. Não demorou a levar com uma cadeira na pinha, e se não fosse o tenente piloto Malaquias, as coisas seriam mais graves, já que ele se preparava para usar a pistola.
São tantos os exemplos de um poder fragilizado e estratificado em diversos poderes que as cumplicidades dos mandantes se limitam a gerir as suas próprias hortas. Os políticos são uns bacocos ignorantes e amorfos, os administradores de posto uns oportunistas mergulhados na contemplação das raparigas mais vistosas. Enquanto os bens da nação estão à mercê da pilhagem, a maioria da hierarquia militar mais graduada, acomoda-se a esta forma de cumplicidades, esquecendo a tropa de quadrícula que sofre as agruras da decadência de todo o sistema que os devia proteger. Assim temos o país a afundar-se no pântano da miséria dos que vivem no torrão à beira-mar plantado.
O Tavares remata a conversa:
- Não são visíveis movimentos de mudança, porque os chefes não estão vocacionados para a reflexão; limitam-se a elaborar alguns planos de operações e a ler os relatórios. Isso é suficiente para justificar a subida nas carreiras e a exigência de melhores ordenados.

Nacala, Novembro 1966
(autor desconhecido)

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